OS TRIBUNAIS NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS – O CASO PORTUGUÊS
Boaventura Sousa Santos - Maria Manuel Leitão Marques - João Pedroso - Pedro Lopes Ferreira
Edições Afrontamento
ISBN:972-360408-6
Páginas:766
Dimensões: 234x162x40 mm.
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DA INTRODUÇÃO
Um dos fenômenos mais intrigantes da sociologia política e da ciência política contemporânea é o recente e sempre crescente protagonismo social e político dos tribunais: um pouco por toda a Europa e por todo o continente americano, os tribunais, os juízes, os magistrados do Ministério Público, as investigações da polícia criminal, as sentenças judiciais surgem nas primeiras páginas dos jornais, nos noticiários televisivos e são tema frequente de conversa entre os cidadãos.Tratase de um fenômeno novo ou apenas de um fenômeno que, sendo velho, colhe hoje uma nova atenção pública?
Ao longo do nosso século, os tribunais sempre foram, de tempos a tempos, polêmicos e objeto de aceso escrutínio público. Basta recordar os tribunais da República de Weimar logo depois da revolução alemã (1918) e os seus critérios duplos na punição da violência política da extrema direita e da extrema esquerda; o Supremo Tribunal dos Estados Unidos e o modo como tentou anular a legislação do New Deal de Roosevelt no início dos anos 30; os tribunais italianos de finais da década de 60 e da década de 70 que, através do “uso alternativo do direito”, procuraram reforçar a garantia jurisdicional dos direitos sociais; o Supremo Tribunal do Chile e o modo como tentou impedir o processo de nacionalizações levado acabo por Allende no princípio da década de 70.
Contudo, esses momentos de notoriedade se distinguem do protagonismo dos tempos mais recentes em dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, em quase todas as situações do passado os tribunais se destacaram pelo seu conservadorismo, pelo tratamento discriminatório da agenda política progressista ou dós agentes políticos progressistas,pela sua incapacidade para acompanhar os processos mais inovadores de transformação social, econômica e política,muitas vezes sufragados pela maioria da população. Em segundo lugar, tais intervenções notórias foram, em geral,esporádicas, em resposta a acontecimentos políticos excepcionais, em momentos de transformação social e política profunda e acelerada.
Em contraste, o protagonismo dos tribunais nos tempos mais recentes, sem favorecer necessariamente agendas ou forças políticas conservadoras ou progressistas, tal como elas se apresentam no campo político, parece assentar num entendimento mais amplo e mais profundo do controle da legalidade, que inclui, por vezes, a reconstitucionalização do direito ordinário como meio de fundamentar um garantismo mais ousado dos direitos dos cidadãos. Por outro lado, ainda que a notoriedade pública ocorra em casos que constituem uma fração infinitesimal do trabalho judiciário é suficientemente recorrente para não parecer excepcional e para, pelo contrário, parecer corresponder a um novo padrão do intervencionismo judiciário. Acresce que esse intervencionismo, ao contrário dos anteriores, ocorre mais no domínio criminal do que nos domínios civil, laboral ou administrativo e assume como seu traço mais distintivo a criminalização da responsabilidade política, ou melhor, da irresponsabilidade política. Tampouco se dirige, como as formas anteriores de intervencionismo, aos usos do poder político e às agendas políticas em que este se traduziu. Dirige-se antes aos abusos do poder e aos agentes políticos que os protagonizam.
No entanto, o novo protagonismo judiciário partilha com o anterior uma característica fundamental: traduz-se num confronto com a classe política e com outros órgãos de poder soberano, nomeadamente com o Poder Executivo. E é, por isso que, tal como anteriormente, se fala agora da judicialização dos conflitos políticos. Sendo certo que na matriz do Estado moderno o Judiciário é uni poder político, titular de soberania, a verdade é que ele só se assume publicamente com o poder político na medida em que interfere com outros poderes políticos. Ou seja, a política judiciária, que é uma característica matricial do Estado moderno, só se afirma como política do Judiciário quando se confronta, no seu terreno,com outras fontes de poder político. Daí que a judicialização dos conflitos políticos não possa deixar de se traduzir napolitização dos conflitos judiciários.
Como veremos adiante, não é a primeira vez que esse fenômeno ocorre, mas ocorre agora de modo diferente e por razões diferentes. Sempre que ele ocorre se levantam a respeito dos tribunais três questões: a questão da legitimidade, a questão da capacidade e a questão dá independência.
A questão da legitimidade só se põe em regimes democráticos e diz respeito à formação da vontade da maioria por via da representação política obtida eleitoralmente. Como, na esmagadora maioria dos casos, os magistrados não são eleitos, questiona-se o conteúdo democrático do intervencionismo judiciário sempre que este interfere com o Poder Legislativo ou o Poder Executivo.
A questão da capacidade diz respeito aos recursos de que os tribunais dispõem para levar a cabo eficazmente apolítica judiciária. A capacidade dos tribunais é questionada por duas vias. Por um lado, num quadro processual fixo e com recursos humanos e infraestruturais relativamente inelásticos, qualquer acréscimo “exagerado” da procura da intervenção judiciária pode significar o bloqueio da oferta e, em última instância, redundar em denegação da justiça. Por outro lado, os tribunais não dispõem de meios próprios para fazer executar as suas decisões sempre que estas, para produzir efeitos úteispressupõem uma prestação ativa de qualquer setor da administração pública. Nesses domínios, que são aqueles em que a“ politização dos litígios judiciais” ocorre com maior frequência, os tribunais estão à mercê da boa vontade de serviços que não estão sob sua jurisdição e, sempre que tal boa vontade falha, repercute direta e negativamente na própria eficácia da tutela judicial.
A questão da independência dos tribunais está intimamente ligada com a questão da legitimidade e com a questão da capacidade. A independência dos tribunais é um dos princípios básicos do constitucionalismo moderno, pelo que podeparecer estranho que seja objeto de questionamento. E em verdade, ao contrário do que sucede com a questão da legitimidade, o questionamento da independência tende a ser levantado pelo próprio Poder Judiciário sempre que se vê confrontado com medidas do Poder Legislativo ou do Poder Executivo que considera atentatórias a sua independência. A questão da independência surge assim em dois contextos. No contexto da legitimidade, sempre que o questionamento desta leva o Legislativo ou o Executivo a tomar medidas que o Poder Judiciário entende serem mitigadoras da sua independência. Surge também no contexto da capacidade, sempre que o Poder Judiciário, carecendo de autonomia financeira e administrativa, se vê dependente dos outros poderes para se apetrechar dos recursos que considera adequados para o bom desempenho das suas funções.
As questões da legitimidade, da capacidade e da independência assumem, como vimos, maior acuidade em momentos em que os tribunais adquirem maior protagonismo social e político. Esse fato tem um importante significado,tanto pelo que revela, como pelo que oculta. Em primeiro lugar, tal protagonismo é produto de uma conjunção de fatores que evoluem historicamente, pelo que se torna necessário periodizar a função e o poder judiciais nos últimos 150 anos afim de podermos contextualizar melhor a situação presente. Em segundo lugar, as intervenções judiciais que são responsáveis pela notoriedade judicial num dado momento histórico constituem uma fração ínfima do desempenho judiciário, pelo que um enfoque exclusivo nas grandes questões pode ocultar ou deixar subanalisado o desempenho que na prática cotidiana dos tribunais ocupa a esmagadora maioria dos recursos e do trabalho judicial. Em terceiro lugar, o desempenho dos tribunais, quer o desempenho notório, quer o desempenho de rotina, num determinado pais ou momento histórico concreto, não depende tão só de fatores políticos, como as questões da legitimidade, da capacidade e da independência podem fazer crer. Depende de modo decisivo de outros fatores e nomeadamente dos três seguintes: do nível de desenvolvimento do país e, portanto, da posição que este ocupa no sistema mundial e na economia mundo; da cultura jurídica dominante em termos dos grandes sistemas ou famílias de direito em que os comparatistas costumam dividir o mundo; e do processo histórico por via do qual essa cultura jurídica se instalou e se desenvolveu (desenvolvimento orgânico; adoção voluntarista de modelos externos; colonização etc.).
Uma análise sociológica do sistema judiciário não pode assim deixar de abordar as questões de periodização, do desempenho judicial de rotina ou de massa, e dos fatores sociais, econômicos, políticos e culturais que condicionam historicamente o âmbito e a natureza da judicialização da conflitualidade interindividual e social num dado país ou momento histórico.
OS TRIBUNAIS E O ESTADO MODERNO
Os tribunais são um dos pilares fundadores do Estado constitucional moderno, um órgão de soberania de par com o Poder Legislativo e o Poder Executivo. No entanto, o significado sociopolítico dessa postura constitucional tem evoluídonos últimos 150 ou 200 anos. Essa evolução tem alguns pontos em comum nos diferentes países, não só porque os estados nacionais partilham o mesmo sistema interestatal, mas também porque as transformações políticas são em parte condicionadas pelo desenvolvimento econômico, que ocorre a nível mundial no âmbito da economia do mundo capitalista implantada desde o século XV Mas, por outro lado, essas mesmas razões sugerem que a evolução varia significativamente de Estado para Estado, consoante a posição no sistema interestatal e da sociedade nacional a que respeita no sistema da economia mundo. Por essa razão, a periodização da postura sóciopolítica dos tribunais que a seguir apresentamos tem sobretudo em mente a evolução nos países centrais, mais desenvolvidos, do sistema mundial. A evolução do sistema judicial em países periféricos e semiperiféricos (como Portugal, Brasil etc.) pauta-se por parâmetros relativamente diferentes. Como se compreenderá à luz do que ficou dito acima, essa evolução comporta algumas variações em função da cultura jurídica dominante (tradição jurídica europeia continental; tradição jurídica anglosaxã etc), mas tais variações são pouco relevantes para os propósitos analíticos deste trabalho. Distinguimos três grandes períodos no significado sociopolítico da função judicial nas sociedades modernas: o período do Estado liberal, o período do Estado providência e o período atual, que, com pouco rigor, podemos designar por período da crise do Estado providência.
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