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quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Santa Engrácia, Virgem e Martir

Santa Engrácia, Virgem e Martir
Autor(es):Biblioteca Franciscana Missionária
Condição de utilização: Usado
Tema do livro:Religião
Editora:Anais das Franciscanas Missionárias de Maria
Ano de edição:1943
Idioma:Português
Formato:Bolso
Tipo de capa:Capa mole
Nº de Páginas:210
Livro antigo, em condições razoáveis. Páginas amarelecidas pelo tempo, limpas sem anotações.
Preço: 7.00€ 
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Sobre o tema:


Santa Engrácia - História da Santa Mártir

16 de Abril

Santa Engrácia - História da Santa Mártir
Corria o ano de 303 D.C.
Oteomero, de uma distinta família romana tinha sido governador de Braga e era actualmente Senador, gozava da sua alta posição e da sua imensa fortuna. Tinha uma única filha, Engrácia, que era formosíssima. Mas tão singela e tão modesta, fugindo do luxo e dos divertimentos pagãos que seu pai andava preocupado querendo adivinhar a razão de Engrácia não se parecer com as raparigas da sua posição. Pensava no casamento da sua filha, via nela o futuro da sua casa e resolveu mandá-la à Gália, preparando-lhe ali o enlace com um jovem general romano. Mas como são diferentes os caminhos de Deus...
Numa tarde de Outono, o pai e a filha encontravam-se passeando nos magníficos jardins do palácio, a atmosfera estava impregnada do perfume das flores e os cachos maduros penduravam-se nas grades de bronze dourado. Oteomero sentou-se junto de uma fonte e chamando a filha começou a falar-lhe no assunto que tanto o interessava. Sentia-se velho, e não queria morrer sem deixar um herdeiro à sua casa, mas... a resposta de Engrácia admirou-o.
– Minha filha a tua linguagem é a dos cristãos escravos de uma cruel divindade à qual sacrificam tudo.
– Não meu pai, o Deus dos cristãos não é um tirano, é um salvador amabilíssimo que morreu na cruz para salvar os homens, feitos à sua imagem e semelhança, quando pecam, estende-lhes os braços oferecendo-lhes a sua misericórdia e ensinando-lhes o arrependimento, como compará-los aos vossos Deuses?
Oteomero estava indignado com aquela linguagem, mas não querendo afligir a filha que era todo o seu enlevo, disse-lhe:
– Engrácia, sê condescendente com o teu pai. Conheci em Barcelona, Endonte, general romano de uma família distintíssima, ligado à nossa, tem a simpatia do Imperador e está comandando as legiões romanas na fronteira da Gália, é esse jovem que te escolhi para esposo.
Engrácia baixou a cabeça, e humildemente mas firme, respondeu:
– Desposar-me eu? Nunca meu pai!
Oteomero tapando o rosto com as mãos exclamou:
– A minha única filha, a alegria dos meus últimos dias destrói com uma palavra todas as minhas ilusões!
– Pai, se eu pudesse satisfazer os teus desejos, mas... há um sentimento mais alto que me conduz. Não posso aceitar o esposo que me destinais.
Oteomero cheio de esperança diz-lhe:
– Filha, se é outro o teu escolhido diz-me o seu nome, não tardarei em lhe abrir os braços.
Então, Engrácia transfigurada exclamou:
– O meu esposo é Jesus-Cristo, eu sou cristã!
– Infeliz!!! – rugiu Oteomero empurrando a filha e desapareceu.
A noite desceu sobre o palácio do velho Senador, e pensamentos terríveis o agitaram... «Se chega aos ouvidos do Imperador a decisão da minha filha a que martírios, ela está exposta!». Tudo lhe parecia um sonho – «Quem revelaria a Engrácia essa doutrina?». Fora de si, mandou chamar o cunhado.
– Sabes a nossa desgraça? Engrácia é cristã!
Este por sua vez calava-se e depois de muito instado, confessou: – Também eu sou cristão pela graça de Deus. Foi uma pobre escrava, pobre para o mundo, mas rica aos olhos de Deus, quem me converteu a mim e à tua filha.
Passou tempo, mas Oteomero não desistiu, e na Primavera acompanhada de um brilhante séquito, partia Engrácia para Saragoça. Uma visão do futuro tinha feito a Santa Mártir exultar de alegria, mas deixar o pai tão velho e pagão fazia-lhe sangrar o coração. Na véspera de partir, reunira num dos seus aposentos, transformado em oratório, todos os escravos cristãos, suplicando fervorosamente a Deus a conversão de Oteomero. Nisto, o velho Senador que escondido tudo tinha observado, entrou e exclamou abraçando a filha: – Grande é o vosso Deus, pois uma jovem humilde e tímida como Engrácia, pôde levantar-lhe em minha casa um altar, e reunir aqui os meus melhores escravos. Não sabia que o meu palácio estava cheio de cristãos. Se o vosso Deus é poderoso como dizeis, ele dissipará as minhas trevas e se resistirdes às perseguições de que são vítimas os discípulos de Cristo, também eu abraçarei a vossa fé!
Saragoça, cidade privilegiada de Maria. Conta Maria de Agreda, na Mística Cidade de Deus, o que se segue.
Estava S. Tiago Apóstolo pregando em Saragoça, quando um dia lhe apareceu Nossa Senhora rodeada de uma multidão de Anjos que traziam uma coluna de mármore ou jaspe e uma pequena estátua da Mãe de Deus. Nossa Senhora ordenou aos anjos que colocassem a sua estátua sobre a coluna e a pusessem no sítio onde ainda hoje está. Disse a S. Tiago que queria ali um templo em sua honra, onde ficaria a coluna e a sua imagem até ao fim do mundo, e que protegeria a Espanha!
A primeira visita de Engrácia em Saragoça foi a Nossa Senhora do Pilar. A sua entrada na cidade não passou despercebida, devido à sua formosura e ao brilhante séquito que a acompanhava.
Reinava Diocleciano, e uma nova era de perseguições, ia começar. Daciano, perfeito romano chegava a Saragoça para lhe dar início. Acompanhava-o Endonte, general romano, noivo que Oteomero destinava a sua filha. Era um belo moço e sabendo pelo pai da chegada de Engrácia a Saragoça, queria vê-la. No seu orgulho, não duvidou um instante do consentimento dela e convidou para a boda os seus amigos. Fascinado com a formosura da Lusitana, pediu a sua mão, sabendo ser essa a vontade de Oteomero. Mas ela dirigindo-lhe palavras que ele como pagão não podia compreender, acabou dizendo: – Nunca aceitarei um esposo humano.
– Mas para quê viestes então a Saragoça?
– Para cumprir a vontade de Deus – respondeu Engrácia.
O general cheio de orgulho e cólera quis replicar, mas a Santa mostrando-lhe a saída retirou-se, dizendo-lhe: – Endonte, Deus te perdoe e ilumine!
A perseguição desencadeou-se terrível. Daciano queria saber o número e o asilo dos cristãos. Procurou o general romano e disse-lhe: – O édito vai ser afixado esta noite, os altares estão prontos para os sacrifícios, espero uma boa presa, uma mulher, uma estrangeira a quem ninguém ousa prender, mas que em breve estará em meu poder. Conhece-la? É aparentada com a nossa família.
– Seja o que for – respondeu Endonte com dureza. – Se é cristã tem de morrer!
Engrácia não aparecia, não chegara ainda o dia da vitória.
Depois de buscas infrutíferas, espalhou-se que os cristãos se tinham refugiado na Igreja do Pilar. Endonte juntou as suas tropas e avançou para o templo, mas à porta estacou; supersticioso e cobarde, receou entrar no templo de Maria. Vendo que as suas tropas se recusavam também, mandou rodear a Igreja de matérias inflamáveis e deitar‑lhe fogo. Mas... o poder incomparável de Nossa Senhora, ardeu tudo, mas o templo ficou intacto. Depois de muitas pesquisas, Endonte conseguiu entrar nas catacumbas, junto ao Èbro, era ali que se reuniam os cristãos; para isso seguiu uma piedosa mulher conhecida de sua irmã Marcela, esta também já cristã de desejo. Endonte seguiu, os cristãos estavam em oração. Imediatamente se ouviu o tilintar das armas dos soldados romanos que entravam à ordem de Endonte.
– Quem procuras?
– Engrácia.
E a Santa Virgem, que mais parecia um anjo que uma criatura, esperando salvar os seus irmãos, avançou dizendo com um santo orgulho: – Sou eu!
Os cristãos foram massacrados e a Virgem lusitana levada em ferros para a prisão. Levantou-se o tribunal na praça pública de Saragoça e Engrácia foi conduzida à presença do perfeito romano. Á sua entrada houve um sussurro na multidão.
– És cristã? – perguntou Daciano.
– Tenho essa imensa ventura.
– Teu pai educou-te no culto dos Deuses?
– Eu só adoro o verdadeiro Deus.
– Estás noiva de um ilustre general romano?
– O meu único esposo é Jesus Cristo.
– Sabes que tenho o poder de te fazer sofrer as maiores torturas? Sacrifica aos nossos Deuses!
– Jesus Cristo é o defensor das virgens, nunca adorei aos vossos Deuses, só adoro Jesus Cristo, filho de Deus, criador de todas as coisas.
Nisto, ouve-se um clamor imenso sair da multidão. – Ao fogo, ao fogo com a lusitana!!!
Daciano mandou-a reconduzir à prisão, dizendo que ele mesmo, escolheria os suplícios que ela devia sofrer.
Engrácia, como o divino esposo foi presa a uma coluna e cruelmente açoitada; em seguida amarrada a dois fogosos cavalos numa corrida vertiginosa, desconjuntaram, rasgaram o corpo da Santa Virgem; era uma chaga, mas levaram-na ao cárcere ainda com vida. Nos seus lábios via-se um sorriso celestial, e quando piedosas mulheres entraram na prisão, acharam-na em extasies, voltando a si disse-lhes: – Porque choram? Se é hoje o dia mais feliz da minha vida, o corpo sofre, mas a alma goza, porque tem o penhor da vida eterna. Ah! O Céu! Se soubésseis o que é o Céu!!!!
O Bispo indo visitá-la, quis dar-lhe ânimo com estas palavras: – Feliz minha filha, derramastes o vosso sangue por Jesus Cristo.
– Ainda não ­– respondeu ela. – O meu divino esposo disse-me que tenho martírios mais atrozes a sofrer, tenho almas a salvar e não há redenção sem sacrifícios.
Daciano, instrumento do inferno preparava novos suplícios, entraram no cárcere cinco algozes que mais uma vez quiseram obrigar Engrácia a sacrificar aos Deuses, mas inutilmente. Estenderam a Santa Mártir no chão, pés e mãos presos em argolas de ferro, metidas nas paredes, e arrancando-lhe o fato colado às chagas, rasgaram-lhe o corpo com pentes e unhas de ferro, tirando-lhe parte do fígado. Engrácia pronunciava os nomes de Jesus e Maria. Neste momento entra na prisão Daciano, enraivecido com a constância de Engrácia, exclama: – Por toda a parte os cristãos, como exterminá-los? Talvez os carcereiros o sejam também! – e vendo a Santa Virgem ainda com vida, tenta ele mesmo acaba-la pela última vez. Engrácia por sinais recusou; mandou anda cortar‑lhe o peito do lado do coração, a mártir caiu para cima do algoz mas não morreu, Deus conservava-lhe a vida milagrosamente.
Então, Daciano, cheio de terror e raiva disse: – É preciso acabar coma lusitana! – e mandou vir um prego e martelo, o fez entrar na testa de Engrácia que a seguir expirou!
Querendo mais vítimas, mandou ali mesmo degolar Marcela, irmã do general romano, um triunfo de Engrácia que com o seu martírio tinha alcançado a Deus a conversão da jovem romana e de seu pai Oteomero, martirizado em Braga.
Passava-se isto a 16 de Abril.
Daciano convenceu-se que os cristãos se atemorizassem com os suplícios de Engrácia. Os mártires de Saragoça contam-se aos milhares. Os cristãos puderam enterrar o cadáver da Santa Mártir nas catacumbas, e nesse momento viram anjos revestidos de dalmáticas encarnadas, encessando com turibulos de ouro; as catacumbas iluminaram-se maravilhosamente e coros angélicos entoaram cânticos harmoniosos. Passados dias o general romano adoeceu gravemente e sentindo-se morrer, arrastou-se até ao túmulo de Engrácia e de Marcela. O Bispo Valero que vinha orar junto das Santas Mártires, reconheceu-o e vendo-o moribundo, perguntou-lhe: – Que queres? O baptismo? – respondeu Endonte: – O sangue da minha irmã Marcela caiu nos meus olhos e a minha alma abriu-se à verdade.
Depois de baptizado, voltando-se para o túmulo das Santas Virgens, exclamou:
– Elas me abriram o Céu! Meu Deus, que excesso de misericórdia e de amor.














 


Lenda das Obras de Santa Engrácia





APL 2883
Simão cavalgava apressado, envolvido na capa negra. A noite acolhia-o. Mal chegara e logo ela encontrara o moço Simão Pires — um cristão novo — cavalgando direito ao convento de Santa Clara. Era assim quase todos os dias. Nem esperava pelo seu fim. Ousado e valente, Simão não cuidava, sequer, de tapar o rosto. Mas o crepúsculo avisava a noite, e esta vinha logo encobri-lo. De quantos amores às escondidas a noite é cúmplice! Também era ainda a noite que ajudava Violante — uma linda noviça — a sair ao jardim para falar a sós com o seu bem-amado. Porque ela não pensava ser freira. Ela amava Simão. Amava-o profundamente. Porém, seu pai, fidalgo arrogante, afastara-a do caminho do seu amor, encerrando-a num convento.
  O cavalo parou a um simples esticão de rédeas. Ali estava o muro. Breve cairia a escada de corda. O coração pulou-lhe. A escada tocou no muro. Simão deixou o cavalo, que sabia esperar pacientemente, e subiu. As suas mãos, no cimo, tocaram outras mãos. O seu rosto, outro rosto. Saltou para a cerca. Estavam, finalmente, juntos.
— Querida Violante! Esta espera mata-me! Sem ti não saberei viver!
Ela ciciou quase, anichada nos braços fortes do seu bem-amado:
— Meu amor, acalma-te! Eu penso como tu mas... teremos de saber esperar um pouco mais...
Ele disse com arrebatamento:
— Não posso! Vou amanhã mesmo falar com o teu pai!
A noviça apertou-lhe as mãos.
— Não... não faças isso por agora!
E numa voz quase chorosa:
— Hoje o meu pai esteve aqui... falei com ele… mas encontrei-o inflexível. Quer que eu professe!
A jovem sentiu-se mais presa do abraço forte de Simão. A voz do bem-amado soou rouca aos seus ouvidos:
— Nunca o permitirei!
— Mas ele insiste...
— Se for necessário, hei-de raptar-te! Levar-te-ei para longe!
— Seria a desonra para os meus!
— Que pretendes então fazer?
— Esperar! Deus velará pela nossa felicidade!
— Esperar! Já começo a estar cansado! Tenho de agir!
— E qual é a tua resolução?
— Pedir-te que escolhas: obedeceres a teu pai e ficares aqui no convento... ou fugires comigo!
A jovem noviça tapou o rosto com as mãos. Chorava silenciosamente. Simão impacientou-se:
— Não te compreendo, Violante. Se realmente gostas de mim, não vejo motivo para tanta inquietação. A não ser que eu já nada represente para ti!
Violante mostrou o seu rosto bonito coberto de lágrimas. E declarou com veemência:
— Simão! Bem sabes como te amo!
— Então porque hesitas?
— Porque não devo decidir assim, sem reflectir.
E suplicante:
— Dá-me um prazo, Simão. Por pequeno que seja. Preciso de pensar!
Simão respirou fundo, a ganhar calma.
— Pois bem: amanhã à noite virei saber a tua resposta.
Ela sorriu ainda por entre as lágrimas.
— Está bem! Amanhã à noite ficará tudo decidido.
Em baixo ouviu-se um tropel de cavalos que se aproximavam. Violante assustou-se:
— Vai-te, Simão! Vem aí gente!
Ele abraçou-a e segredou-lhe ao ouvido:
— Até amanhã, meu amor!
E desceu, rápido, a esconder-se na noite escura.

A manhã sorriu à noite, que se afastou num passo cadenciado. Sorriu buliçosa, toda luz e cor. Simão dormia, mas foi também despertado. Não pelo sorriso fresco da manhã, mas pelo bater rude de alguém que gritava à porta da sua casa.
— Abra em nome de El-Rei!
Simão vestiu-se com rapidez. As pancadas fortes continuavam soando na porta. O jovem gritou:
— Vou já!
Quando a porta se abriu, dois homens entraram. Um deles era o meirinho. Simão indagou, surpreendido:
— Que se passa?
O meirinho sorriu ironicamente, ao responder:
— Passa-se… que está preso em nome de El-Rei!
— Preso?
— Sim!
E voltando-se para o outro homem que o acompanhava:
— Tens a certeza de que é este o homem que procuramos?
O outro respondeu:
— Sim, senhor meirinho, é este mesmo. Chama-se Simão Pires e é cristão novo. Não admira, portanto, que tenha feito o que fez!
Simão olhava os homens com perplexidade.
— Não compreendo! De que me acusam?
O outro homem ia falar, mas o meirinho fez-lhe um sinal imperativo com a mão para que se calasse. E voltando-se para Simão:
— Responda-me apenas a três perguntas. Primeira: andou ontem à noite com o seu cavalo rondando a igreja de Santa Engrácia?
Simão não respondeu logo. O meirinho insistiu.
— Seja franco. Andou ou não?
— Andei por ali...
O outro homem sorriu. O meirinho continuou:
— Segunda pergunta: o seu cavalo levava os cascos entrapados para não fazer barulho?
Simão mordeu ligeiramente os lábios. Receava, não por si, mas por Violante. Todavia, o meirinho continuava insistindo:
— Vamos! Responda só a verdade!
Simão decidiu-se:
— É verdade.
O outro exultou:
— Eu não dizia, senhor meirinho? Foi ele mesmo!
O meirinho tornou dura a sua expressão.
— Vamos, Simão Pires! Já agora, responda à terceira pergunta: que andava a fazer a essas horas junto da igreja de Santa Engrácia?
Simão silenciou. Porém o meirinho tornou-se ainda mais duro:
— Vamos! Exijo que responda!
O jovem abanou a cabeça, numa negativa:
— Não posso.
— Não pode porquê?
— Porque não devo.
— Pois bem! Também eu não devo hesitar mais. Considere-se preso.
— Porquê?
— Bem sabe porquê!
— Não sei!
— Pois vou avivar-lhe a memória. Há dias que tem andado a preparar o roubo sacrílego das sagradas partículas e dos cálices de ouro da igreja. E ontem efectuou esse roubo!
Simo sentiu-se verdadeiramente indignado. Bradou:
— É falsa essa acusação! Falsa e indigna!
O outro apressou-se a intervir.
—  Se é falsa, como explica o senhor que eu o tenha visto a cavalo, fora de horas, junto da igreja de Santa Engrácia? E ainda por cima com os cascos do cavalo entrapados!... Vamos, justifique-se!
Simão fechou os punhos. Depois levou uma das mãos ao rosto, que logo destapou para encarar o meirinho, afirmando com voz decidida:
— Juro que estou inocente! Deus bem o sabe!
O meirinho cerrou as sobrancelhas.
— A sua jura não me serve. Ou diz o que fez ontem à noite, ou tenho de o prender.
— Já disse que estou inocente desse roubo indigno de um homem! Mas não posso dizer o que fazia ontem à noite junto da igreja de Santa Engrácia!
— Então… considere-se preso!
A recusa obstinada de Simão em confessar o que fizera na noite do roubo, embora negasse esse mesmo roubo, acabou por fazer acreditar o juiz da culpabilidade do réu. E Simão foi condenado à morte, apesar dos seus veementes protestos de inocência.
Quando o jovem se convenceu que já nada havia a fazer, todo o seu rompante se diluiu. A desgraça marcara-o. Não sabia, sequer, como reagir. Quando o último minuto soou, o meirinho acercou-se dele. A sua voz era quase carinhosa. Não compreendia bem porquê, mas custava-lhe a acreditar no gravíssimo pecado que imputavam a Simão.
— Vamos, Simão Pires! Chegou a tua última hora! Prepara-te para morrer!
Simão olhou-o numa expressão dolorosa.
— O tribunal, então, não me quis ouvir?
O meirinho não lhe sustentou o olhar.
— Não, Simão Pires. O tribunal somente pode actuar diante de provas… e as provas são todas contra ti. Simão meneou a cabeça.
— O homem que me viu continua a afirmar que fui eu que roubei?
— Sim. É a principal testemunha de acusação.
— Pois que Deus me valha, já que nada mais posso fazer!
— Podes, sim!
— O quê?
— Confessar o que fizeste naquela noite...
— Prefiro morrer!
— E morrerás, Simão, morrerás!
Simão tapou o rosto, sem dizer palavra. Mas no íntimo do seu coração gritava desesperadamente um nome: Violante!

O burburinho aumentava. A multidão comprimia-se. A execução ia ter o seu início, mesmo em frente da nova igreja de Santa Engrácia, cujas obras já tinham começado.
Cabisbaixo, sempre silencioso, Simão Pires deixou-se conduzir. As cerimónias para tirar a vida a um homem sob a égide da Justiça são morosas e solenes. Simão assistiu a tudo como se estivesse ausente. Amarraram-no sobre a pira de lenha. Acenderam a fogueira. Mas quando as labaredas envolveram o corpo de Simão, este gritou desesperadamente:
— É tão certo morrer inocente do que me acusam, como estas obras da igreja nunca mais acabarem!
O povo que o escutou entreolhou-se, confuso. Que teriam a haver as obras da igreja com o roubo que ele cometera? O povo só mostrou curiosidade enquanto Simão deu sinais de vida. Mal o viram morto, todos se foram embora, como quem regressa a casa após um espectáculo. E tudo quanto se relacionava com o roubo pareceu morrer com ele.

Os anos foram seguindo. Imperturbáveis. Sem descanso. Violante, a jovem e gentil noviça de Santa Clara, fez a vontade ao seu pai: professou, com o nome de Maria do Céu. E um dia, muito tempo depois da morte de Simão, encontrando-se num convento em Orense, foi chamada de urgência para assistir aos últimos momentos de um pobre ladrão. Ela admirou-se:
— É a mim que ele deseja falar, senhor padre capelão?
— Sim, madre.
— Mas... não o conheço...
— Ele insiste. E penso que deve fazer-lhe a vontade.
— Mas... porquê?
— Deus é grande! Vá, reverenda madre! Vá, enquanto a vida não se apaga daquele corpo...
E madre Maria do Céu saiu a caminho da prisão.

A atmosfera era pesada. A luz fraca. Madre Maria sentia-se confusa, nem sabia bem porquê. Aproximou-se do preso. Vendo-a, este reanimou-se um pouco:
— Madre, minha madre, eu sei que vou morrer! Por isso vos chamei.
— Mas... porquê?
— Porque só a vós, madre Maria do Céu, outrora noviça de Santa Clara, quero confessar um segredo.
— Que segredo?
— Um segredo que tem sido o remorso de toda a minha vida!
— Dizei, então!
Respirando a custo, o prisioneiro confessou:
— Sou um miserável gatuno, minha madre!
Suavemente, ela retorquiu-lhe:
— É a Deus, Nosso Senhor, que tendes de dar contas dos vossos actos, e não a mim!
— É certo... Mas o que tenho para dizer-vos… interessa-vos pessoalmente!
A freira abriu os olhos como quem não entende bem, mas não interrompeu o moribundo. Este continuou, embora a custo:
— Lembrais-vos ainda de Simão Pires?
Este nome soou como dobrar de finados no coração da pobre freira. Receou ter ouvido mal. Trémula, perguntou:
— Dissestes... Simão Pires?
— Sim!
— E... porque me falais dele?
— Porque... fui eu que o conduzi à morte!
— Vós? Como?
— Fui eu que roubei os cálices de ouro e as sagradas partículas da igreja de Santa Engrácia! Sabia que ele passava ali todas as noites com o cavalo de cascos entrapados para vos ir ver.
A freira murmurou:
— Oh, meu Deus... poupai-me!
Mas o moribundo continuou:
— Assim... facilmente fiz recair as suspeitas sobre Simão Pires... Calculava que devia gostar muito de vós e não desejasse comprometer-vos. Mas agora... agora que vou morrer… precisava desabafar! Talvez o meu castigo seja menor!...
A freira não conseguiu suster as lágrimas. Mas os votos que fizera haviam-na desligado das coisas mundanais. Ergueu-se e murmurou:
— Que Deus vos perdoe, como eu vos perdoo!
E silenciosamente retirou-se para o seu convento.
Morreu o ladrão. Morreu depois a madre Maria do Céu. Nada parecia memorar o triste caso de Santa Engrácia. Mas um facto bem singular acontecia: as obras do novo templo, começadas quando da execução de Simão Pires, dir-se-ia não mais terem fim! E de tal modo que o povo se habituou a sentenciar acerca de tudo que não chega ao seu termo: «Ora! É como as obras de Santa Engrácia!»

Fonte Biblio MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 229-234

Place of collection Santa Engrácia, LISBOA, LISBOA