Manuel Alegre
Encadernação
Brochado (Capa Mole)
Editora:
Centelha, 1974
Páginas: 139
Livro com pequenos riscos na capa e na primeira página e assinatura de posse na 5ª
Restantes páginas estão limpas e em muito bom estado.
PREÇO 6.00€
As mãos
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.
Anos antes, o convívio entre os dois possibilitou a criação de um poema-cantiga que ficou na história da resistência à Ditadura. *Conta-se que numa noite, em plena Praça da República em Coimbra, Manuel Alegre exprimia a sua revolta:
«Mesmo na noite mais triste/ Em tempo de servidão/ Há sempre alguém que resiste/ Há sempre alguém que diz não».
E Adriano Correia de Oliveira disse «mesmo que não fiquem mais versos, esses versos vão durar para sempre». Ficaram. António Portugal compôs a música . «E depois o poema surgiu naturalmente». Tinha nascido a Trova do vento que passa.
Três dias depois vieram para Lisboa, para uma festa de recepção aos alunos na Faculdade de Medicina. Manuel Alegre fez um discurso emocionado, depois Adriano Correia de Oliveira cantou e quando acabou de cantar:
«foi um delírio, teve de repetir três ou quatro vezes, depois cantou o Zeca, depois cantaram os dois. Saímos todos para a rua a cantar. A Trova do vento que passa passou a ser um hino».
NO MEU PAÍS HÁ UMA PALAVRA PROIBIDA (Manuel Alegre)
Mil vezes a prenderam mil vezes cresceu.
E pulsa em nós como o pulsar da própria vida
sabe ao sal deste mar tem a cor deste céu
no meu país há uma palavra proibida.
No meu país há uma palavra que se diz
com a mesma ternura da palavra irmã.
Palavra quente como o sol do meu país
palavra clara como é cada manhã
apesar da tristeza lá no meu país.
No meu país há uma palavra que se escreve
sobre os muros à pressa pela noite dentro.
Uma palavra assim nenhuma língua a teve
tão ausência-presença tão feita de vento
tão impossível de apagá-la onde se escreve.
No meu país há uma palavra onde se guarda
tudo o que se não teve tudo o que não foi.
Por ela a humilhação fabrica uma espingarda
e há um tempo de luta no tempo que dói
nessa palavra que nos guia que nos guarda.
Palavra que murmura nos verdes pinheiros
o recado que o mar vem escrever nas areias.
Se já em nós morreram velhos marinheiros
há uma palavra que semeia em nossas veias
um país que murmura nos verdes pinheiros.
No meu país em cada homem há uma palavra
que rasga as trevas e as prisões: palavra-chave
capaz de transformar em asa a mão que lavra.
E é inútil prenderem-na que é luz e ave
no meu país em cada homem essa palavra.
Palavra feita de montanhas praias vento.
De verde pinho e mar azul. De sol. De sal.
Não vale a pena proibirem o pensamento.
Há uma palavra clandestina em Portugal
que se escreve com todas as harpas do vento.
Todos os que não eram coniventes com os ideais do Estado [Novo], que não permaneceram alheados das atrocidades infligidas à população, acabavam por ser silenciados nas celas das prisões. Porém, muitos escritores, como é o caso de Manuel Alegre, optaram por referir metaforicamente aqueles que estavam incumbidos dessa tarefa: eles são os “fantasmas”, os que não são corpóreos e invadem o sono de cada prisioneiro:
«Os fantasmas tinham entrado no meu sono, invadiram a minha casa no cimo da ternura; os fantasmas eram donos do país. E se eles viessem de repente, a meio da noite, e eu chamasse:
- Mãe!
a voz (tão calma) de minha mãe já nada poderia contra eles. Era um trabalho para mim, uma tarefa para todos aqueles que não podem suportar a sujeição. Eu nunca pude suportar a sujeição. Acaso poderia ter escolhido outro caminho?
Por isso, em maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no meu posto.» (Manuel Alegre, Praça da Canção/O Canto e As Armas, 1.ª ed. de bolso, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, pág. 19-20)
Todos os textos eram alvo de uma depuração linguística com o único objetivo de os tornar úteis ao regime ou, pelo menos, inofensivos. Tal situação fez com que o material linguístico dos autores fosse reduzido a um determinado número de vocábulos.
A pré-seleção do material linguístico pelo aparelho de Estado é também evidenciada no poema de Manuel Alegre “No Meu País Há Uma Palavra Proibida”.
Nesse poema, Manuel Alegre não procurou camuflar as suas intenções, razão pela qual mais facilmente se deteta a crítica ao regime, à forma como ele silenciava certas palavras, neste caso a palavra liberdade.
Apesar de nunca ser, de facto, escrita, as referências que são utilizadas facilmente são associadas a ela: é “uma palavra proibida”, foi presa “mil vezes” e outras tantas cresceu, existe dentro de cada ser como a “própria vida”, “sabe ao sal deste mar tem a cor deste céu”, é dita com a mesma “ternura da palavra irmã”, é “quente” e “clara”, é escrita nos muros de noite e à pressa, não é possível apagá-la e é simultaneamente “ausência-presença”, é o símbolo de tudo “o que não se teve tudo o que não foi”, é o motor que permite superar a “humilhação” e guiar os homens, ela é constituída por toda a essência de Portugal e, por isso mesmo, não é possível rasurá-la nem omiti-la do pensamento porque este é inviolável. Ao unir-se ao próprio destino português, essa inaudível palavra aparece associada a diversos referentes históricos: a época dos descobrimentos, visível nos “verdes pinheiros”, no “mar”, no “sal” e nos “velhos marinheiros” que morreram. Imbuída desse espírito, ela ergue-se “espingarda” num tempo de luta e dor e apesar das tentativas de a aprisionarem, ela persiste “clandestina” a incentivar a hora em que todos poderão usá-la.
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavras. Tese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.